Brasil na Copa de vermelho é o fim da nossa identidade

Se contratassem algum profissional top para fazer um roteiro que descaracterizasse completamente a seleção brasileira, ele provavelmente não seria tão certeiro quanto estão sendo a CBF e a Nike neste momento. Imagine o Brasil jogando uma Copa do Mundo de futebol com um uniforme vermelho, com logo do Michael Jordan e com um técnico italiano.

Alguém diria, com boa dose de razão, que seria o fim dos tempos.

Mais ou menos como seriam os All Blacks em um Mundial de rugby jogando de laranja com um treinador sul-africano (todos os treinadores da equipe ao longo da história foram neozelandeses, e os fortes Springboks são considerados os grandes rivais globais no esporte).

Que a CBF é uma entidade privada e pode em tese fazer o que bem entender com seu dinheiro, com seus cargos e com suas coisas, sabemos até a página 2. Só que a seleção brasileira é um patrimônio nacional, representa talvez mais do que qualquer outra coisa o nosso país.

A tradicional ‘amarelinha’ da qual Zagallo falava com tanto orgulho está no imaginário de qualquer pessoa que conheça minimamente de esporte.

Não há seleção mais simbólica com sua cor do que o Brasil com seu amarelo clássico (e olha que o azul da Azzurra e o laranja da Laranja Mecânica são poderosas marcas do futebol). Ver o Brasil jogando com seu uniforme número dois, o azul, deixou de ser algo estranho na final da Copa de 1958, quando a anfitriã Suécia ficou com o amarelo.

Desde então, ganhamos e perdemos muito jogando ou de amarelo ou de azul (Paulo Machado de Carvalho, cartola na época, motivou os jogadores dizendo que o azul era a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil), mas com nossa cara. Vários outros jogos importantes do Brasil em Copas depois disso também trouxeram o azul para campo, inclusive aquele dramático Brasil 3 x 2 Holanda nas quartas de final de 1994.

Só uma situação muito especial, como foi aquele uniforme negro na luta contra o racismo, deveria fazer a seleção brasileira trocar de cor. Só um ou outro amistoso ou jogo festivo deveria permitir uma experiência no manto sagrado que é a camisa da seleção pentacampeã mundial.

Por que não uma coroa para Pelé?

Pelé morreu poucos dias depois da final da Copa de 2022. O Brasil jogará então no ano que vem na América do Norte sua primeira Copa do Mundo depois da morte do maior jogador da história do esporte mais popular do planeta, muito possivelmente o mais ilustre e renomado brasileiro de todos os tempos. Nada contra o Michael Jordan, o ‘Pelé do basquete’, mas ele é um ídolo estadunidense a quem a Nike deve uma enorme parte de seu sucesso global financeiro e de marketing.

A fornecedora de material esportivo da seleção brasileira de futebol não deveria associar a famosa marca Air Jordan com a camisa canarinho (e olha que eu sou um dos maiores fãs do lendário jogador do Chicago Bulls, ele, para mim, é um dos três maiores atletas da história somando todos os esportes). A Nike poderia, sim, aproveitar e colocar, se fosse o caso, uma coroa de rei no uniforme do Brasil, assim como fez o Santos, clube histórico de Pelé.

Nosso maior ídolo aliás ajudou a divulgar o futebol nos Estados Unidos já nos anos 1970, tinha escritório em Nova York e era muito bem relacionado com autoridades norte-americanas. Seria uma mais do que justa homenagem para ele no segundo Mundial de futebol masculino disputado em território estadunidense (também haverá jogos no Canadá e no México).

Lembro de uma certa polêmica em torno do uniforme da seleção brasileira de 1982, a que mais tenho recordação positiva, pois na época torcia e sofria de verdade para o Brasil no futebol (só chorei por causa de um jogo até hoje, aquele fatídico 2 a 3 no Sarriá para a Itália, que não tinha Carlo Ancelotti na ocasião mas tinha Paolo Rossi). Aquele Mundial da Espanha foi o primeiro da CBF com esse nome, uma vez que antes era tudo CBD.

Os patrocínios estavam engatinhando no futebol, e a seleção apareceu com um raminho de café em sua imaculada camisa amarelinha. Por cerca de US$ 3 milhões, um grande valor na época, o IBC (Instituto Brasileiro do Café), uma estatal, estampou o raminho até dentro do escudo da CBF. Só que ali havia muito de identificação do Brasil com um dos principais produtos de exportação do país (hoje, a Colômbia rivaliza com o Brasil pelo posto de melhor café do mundo). “Café e futebol sempre se deram bem. Agora estão mais juntos do que nunca”, já diziam anúncios com alguns dos craques daquele time mágico comandado pelo saudoso Mestre Telê Santana.

Nada de identificação

A situação agora não tem nada de identificação com o Brasil – lembrando que a CBF já se manifestou sobre o assunto.

O vermelho, muito associado ao comunismo (não quero e não vou tratar de política neste post, mas é claro que há uma associação da cor com países do antigo bloco soviético), é a cara da seleção da Espanha, do Chile, da Costa Rica, etc.

Nada tem a ver com o verde das florestas ou com o amarelo das riquezas minerais. As cores que estão no imaginário da seleção brasileira são outras, as da nossa bandeira, que, aliás, é uma das mais bonitas de todo o planeta.

Recomendo demais o filme “Air: A História Por Trás do Logo”, que mostra a ascensão da Nike com a ajuda monstruosa de um jovem jogador de basquete que revolucionou o esporte de várias formas e que ainda é, com sobras, o atleta que mais faturou dinheiro na história. Só que a história por trás do logo Air Jordan na camisa da seleção brasileira, eu sinceramente não recomendo. Acho que nem a Nike nem o meu ídolo Jordan precisam disso. Nem muito menos o Brasil precisa se sujeitar a esse estrangeirismo. Já será um desafio e tanto para o orgulho nacional ver um treinador gringo comandar a seleção (assim que falam do nosso time, com S maiúsculo e sem precisar de nacionalidade) em uma Copa do Mundo.

Ancelotti, Jesus e o 7 a 1

Carlo Ancelotti pode dizer não à seleção mais uma vez, o que de certa forma amenizaria um pouco o tamanho do choque, afinal, Brasil e Itália falam idiomas bem diferentes na linguagem do futebol em questão tática, da filosofia de jogo, dos conceitos mais básicos do esporte. O Brasil, para o mundo, é sinônimo de ataque. A Itália, para o Universo, representa a defesa.

Até o nome do esporte (Calcio) é diferente para os italianos, que praticavam nos primórdios uma atividade mais física e viril, o que ajuda a explicar o estilo de jogo mais rústico e defensivo deles até hoje. Por mais que Ancelotti seja um dos técnicos mais consagrados da história, ver um italiano à frente da seleção brasileira em uma Copa do Mundo teria um considerável ruído histórico.

Ao que tudo indica, o lusitano Jorge Jesus será agora o treinador do Brasil até a Copa de 2026. Mas lembro que nunca na história das Copas alguma seleção foi campeã com um treinador estrangeiro.

Desde antes do Mundial de 2014 no Brasil eu indico Guardiola para técnico da seleção brasileira, pois imagino que ele, embora espanhol, possa resgatar a identidade do futebol brasileiro, do qual sempre se mostrou grande fã. Seu tipo de jogo pautado na posse de bola e na qualidade técnica casa perfeitamente com o do Brasil de quase sempre, aquele time que todos os torcedores brasileiros desfrutaram por muito tempo e que agora é cada vez mais uma lembrança perdida no passado. Não é à toa que muitos brasileiros, inclusive colegas de imprensa, preferiam agora Jorge Jesus a Carlo Ancelotti.

A imagem do Flamengo de 2019 ainda é forte no nosso país, ele deixou uma marca de futebol ofensivo e corajoso que encantou não só os torcedores rubro-negros, mas todos os apaixonados pelo bom futebol. Jesus tem mais cara de Brasil do que Ancelotti, e isso não apenas pelo fato de ser português e falar nosso idioma.

Ele entende mais das nossas coisas, vivenciou de perto nossa cultura, ele é mais transgressor, ele arrisca mais, tem muitas das nossas virtudes e também dos nossos pecados.

Alguns jogadores estrangeiros que são ícones do esporte, como os alemães Beckenbauer e Breitner, já apontaram lá atrás que o Brasil estava perdendo muito de sua identidade no futebol. Eles não estavam reconhecendo mais a seleção brasileira como antigamente, diziam isso com certa dor até, pareciam não entender porque o Brasil estava cada vez mais parecido com a Europa. Veio o 7 a 1 e não escutamos devidamente o alerta dado pelos alemães.

Creio que essa derrota acachapante ainda vai render livros, filmes e documentários por muitas décadas. Para mim, ela recarrega o espírito do Maracanazo, a famosa derrota de virada por 2 a 1 para o Uruguai no Rio na partida final da Copa de 1950.

Naquele tombo do Brasil com o Maracanã lotado como pano de fundo, ficou escancarado de vez o tal complexo de vira-lata que Nelson Rodrigues consagrou, um sentimento coletivo de inferioridade e desvalorização da identidade e cultura do nosso país. Isso só foi abafado de fato com o primeiro título mundial da seleção em 1958, na Suécia, quando apresentamos para o mundo o Rei Pelé. Viramos os senhores da bola, o futebol-arte, “com brasileiro não há quem possa”, subimos no salto e no pedestal até aquele inesperado 7 a 1. Quando batemos na Espanha por 3 a 0 em 2013 na final da Copa das Confederações, o Brasil passou a acreditar cegamente no hexa. Isso foi ampliado quando Carlos Alberto Parreira, então coordenador e braço direito do multicampeão Felipão, apontou para o ônibus da seleção no começo da Copa de 2014 e disse que estavam chegando os campeões do mundo. O resto é história que a Dona Lúcia escreveu (ou não escreveu e tudo bem, um dia saberemos essa história).

A maior derrota da história da seleção foi muito nossa, o 7 a 1 veio na nossa casa, no nosso Mineirão, com nosso time e nossa torcida de amarelo, com nosso Neymar fora por lesão, com nosso Dante e com nosso Bernard, com nossa imprensa pedindo em grande parte para ir para cima, para ser Brasil. Defendo a tese de que o 7 a 1 nos trouxe o complexo de vira-lata de volta. O choque foi tão grande que até hoje estamos perdidos e desacreditados, cada vez mais admirando o futebol que vem de fora, inclusive vendo nosso Brasileirão e nossos estaduais cheios de treinadores e jogadores gringos.

Pelas informações das últimas horas sobre a seleção brasileira, vislumbro apenas dois cenários para 2026. Ou Jorge Jesus vai ser o primeiro técnico campeão mundial por uma seleção estrangeira e entrará para a história do nosso país como um autêntico descobridor ou o Brasil, pela primeira vez de verdade, vai ser eliminado de uma Copa sem ser o Brasil.

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