A derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950 é importante para entender o termo “complexo de vira-latas”, cunhado pelo escritor Nelson Rodrigues nos anos seguintes, para descrever o sentimento de inferioridade que os brasileiros sentiriam em relação a outros países.
O Maracanaço também é algo fundamental para compreender a organização da Copa Rio de 51, novamente no Brasil. Oficialmente denominada como Torneio Internacional de Clubes Campeões, a disputa foi vencida pelo Palmeiras, que entende ter sido aquele o primeiro Mundial da história.
É esse o ponto de partida da minissérie “Copa Rio, Vira-Latas e o Supermundial“, que estreia no Disney+ neste sábado (24), já com todos seus três episódios disponíveis. A produção da ESPN discute os reflexos daquele torneio e de outras competições interclubes até chegar ao Mundial de Clubes de 2025.
A derrota da seleção brasileira para os uruguaios é importante para a Copa Rio porque é o sentimento de tristeza que motiva a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, equivalente à atual CBF) a buscar junto à Fifa a benção para organizar uma nova competição de caráter mundial, em tentativa de resgatar a autoestima dos torcedores. Desta vez, a participação seria de clubes campeões de seus países.
O nacionalismo entra em campo, o Brasil se veste de verde e vê o Palmeiras ser campeão “contra a Itália”, representada pela Juventus – o torneio também contou com a participação do Vasco entre equipes brasileiras, mas os cariocas perderam a semifinal justamente diante dos paulistas.
“Eu estava passando minhas férias em Santos. E a minha grande recordação é o corso na Avenida da Praia, em Santos, com todos os carros enfeitados de folhas de palmeiras. Aquele jardim da praia, as palmeiras ficaram quase sem folhas. Todo mundo festejando a grande conquista do Palmeiras, que foi, indiscutivelmente, uma conquista que reabilitava, o entusiasmo ao futebol brasileiro, pela repercussão que teve”, contou Mustafá Contursi, ex-presidente do Palmeiras, na minissérie.
O título aplaca um pouco a decepção do ano anterior, mas o Brasil só vai virar sinônimo de futebol mesmo após os títulos da Copa do Mundo de 1958 e 62 e também o bicampeonato intercontinental de clubes do Santos de Pelé, vencendo Benfica (Portugal) e Milan (Itália), em 1962 e 63.
“O futebol brasileiro passou a ser uma unanimidade como futebol artístico, um futebol que envolvia a criatividade do povo brasileiro, essa mistura de etnias do nosso povo. Oficialmente, o Santos, em 1962, foi o primeiro time brasileiro campeão do mundo”, disse Odir Cunha, jornalista e pesquisador.
A nova competição que reunia o campeão europeu contra o sul-americano enterrou de vez as memórias da Copa Rio. O torneio ganhou prestígio com a ida ao Japão, a partir da década de 80.
Com o futebol cada vez mais globalizado, graças à política de expansão da Fifa sob a presidência do brasileiro João Havelange, contudo, a entidade que rege o futebol se viu obrigada a contemplar mais Confederações ao redor do mundo. Surgiu então o primeiro Mundial Interclubes em 2000.
A disputa foi vencida pelo Corinthians e teria continuidade no ano seguinte, com a participação inclusive do Palmeiras, mas tudo mudou em razão da quebra da ISL, maior parceira de marketing da Fifa.
“A Copa Rio aparece na hora que o Corinthians ganhou o Mundial. Porque na hora que o Corinthians ganhou o Mundial, na lógica deles eles ficaram como sem ter o Mundial. Na lógica do Palmeiras. Porque o São Paulo sempre dizia que tinha ganho aquele Mundial do Japão, que nunca foi reconhecido como Mundial”, provoca Antonio Roque Citadini, ex-dirigente do Corinthians.
Sem o Mundial de 2001, o Palmeiras monta um dossiê sobre a Copa Rio e entrega à Fifa. O documento é entregue em momento que a entidade buscava aproximação do Brasil, por causa da Copa de 2014. É nesse contexto que reunião do Comitê Executivo da entidade, em São Paulo, reconhece em ata a Copa Rio como primeira disputa de nível mundial entre clubes.
“E eu enviei, de fato, ao Itamaraty uma correspondência, uma notificação. Essa correspondência foi para a Suíça e o embaixador do Brasil na Suíça encaminhou à Fifa. E, alguns meses depois, veio um parecer da secretaria-geral da Fifa, com um parecer apontando o Mundial do Rio de Janeiro como o primeiro mundial da Fifa, o primeiro Mundial de Clubes”, lembrou Aldo Rebelo, ex-ministro dos Esportes.
Veio em seguida o escândalo da Fifa que derrubou Joseph Blatter do poder – e também Jerôme Valcke, então secretário-geral que havia assinado aquela ata. A homologação do documento fica para o sucessor Gianni Infantino, que, orientado pelo departamento legal da entidade, resolve não abrir o precedente de reconhecer uma competição que não teve a Fifa como organizadora.
“O problema é que o departamento legal da Fifa ficou apavorado. Porque aquilo abria a possibilidade de que não só em 1950, ou no passado, mas alguém hoje fizesse hoje um mundial caça-níquel, digamos assim. Um Mundial que não tenha nenhum tipo de relevância esportiva e declare aquele clube como campeão do mundo. E aí como a Fifa ficaria?”, explica o jornalista Jamil Chade.
Mas a ata existe e, para aqueles que defendem sua validade, ela só deixaria de ser relevante no caso de uma nova votação em conselho, o que não aconteceu até hoje.
“A Fifa teve uma ata reconhecendo o Palmeiras como campeão mundial. Então o Palmeiras é campeão mundial, porque essa é a letra da lei, é um documento oficial que tem que ser respeitado. E, para deixar de ser reconhecido como campeão mundial, tem que ser emitida, produzida uma outra ata junto ao Comitê Executivo”, afirma o também jornalista Eduardo Ohata.
Mas afinal, é vira-latismo o Palmeiras lutar pelo reconhecimento do Mundial?
“Vira obsessão com o São Paulo, 90 eu acho que virou obsessão, Mundial, Mundial, o Palmeiras não tem Mundial, então começa a zoação com o Palmeiras, eu não lembro da zoação do Palmeiras de 80, na década de 80, nenhuma, a zoação em cima do Palmeiras sem o Mundial, ou só com o que pode se chamar o Mundial de 51”, opina o jornalista Xico Sá.
E por que as gestões do próprio Palmeiras, posteriores a 1951, não valorizaram a competição e buscaram seu reconhecimento?
“E aí você percebe que não basta ser só o vencedor. Porque, Palmeiras foi o vencedor. Na época, o presidente do clube era o Frugiuelli. Ele contou essa história. Só que o ano seguinte já tinha outro presidente que não se interessou mais pela história. A história já começou a ser engavetada. Outro que veio, não tirou da gaveta. Por que quem conta a história? O vencedor. Quem foi o vencedor? Aquela gestão. A anterior não interessa”, ressaltou Arnaldo Branco, jornalista e produtor do “Dossiê Copa Rio”.
Vem então a organização da Fifa de um novo Mundial, seguindo o modelo consagrado da Copa do Mundo de seleções. Serão 32 times, divididos em grupos, que disputarão o título a partir de junho nos Estados Unidos.
“O Infantino percebeu que a organização de um Campeonato do Mundo de Clubes podia ser uma nova fonte de financiamento, e esse dinheiro seria obtido pela Fifa. E depois é um mecanismo, a distribuição desse dinheiro é um mecanismo de poder, é um mecanismo de satisfação de clientelas. Daí a importância desse tipo de eventos e de controlar esse tipo de evento”, opina Miguel Poiares Maduro, ex-presidente do Comitê de Governança da Fifa
“Eu gosto muito desse formato, desse novo Mundial. Acho que vai ser um sucesso absoluto. A Fifa acertou muito em fazer nos EUA. Que seria uma pré-Copa do Mundo. E eu adoraria ter vivido esse momento como jogador”, assegurou Ronaldo “Fenômeno”, que é bicampeão intercontinental de clubes.
Mas será que o Supermundial é uma nova chance para um time brasileiro ser novamente campeão do mundo, em algo que não acontece desde 2012 com o Corinthians? Difícil…
“O complexo de vira-lata hoje no Brasil é comemorar o Memphis Depay e achar normal vender o Estevão aos 17 anos. Essa é a versão moderna do complexo de vira-lata”, define o jornalista Paulo Vinícius Coelho, o PVC.
“É um fetiche esse novo campeonato mundial é um fetiche. Porque você quer provar que é um time europeu. Quanto menos brasileiro, melhor”, desabafa Fabricio Carpinejar, poeta e escritor.
E o Palmeiras, que estará no “Supermundial”, já é ou não campeão do mundo? Ou “51 é pinga”, como provocam os torcedores rivais?
“Isso é coisa do futebol, é paixão. Essa paixão pelo futebol que faz com que você ame um time e odeie o outro. Eu acho que é por aí que o Palmeiras não é aceito como campeão mundial por todo mundo, pela Copa de 51”, salienta o jornalista Alberto Helena Jr..
Fica claro que o reconhecimento ou não da Fifa é controverso, mas é difícil negar o legado da Copa Rio para o futebol… Foi a primeira competição com numeração fixa nas camisas em torneios internacionais de clubes, substituições de jogadores, partidas à noite e público feminino, por exemplo.
“Heranças” que seguem vivas no futebol em 2025, ano de mais um “primeiro Mundial” da história…