“O Santos não tolera desvios de conduta e de ética”. Foi com essa dura frase que o clube paulista anunciou, em 9 de maio de 2023, o afastamento preventivo de Eduardo Bauermann dos treinos da equipe profissional. Era o início de um período de 771 dias na vida do zagueiro. Um recorte de tempo que separa dois momentos completamente distintos: o fundo do poço e o Mundial de Clubes.
Àquela altura, Bauermann havia sido citado na Operação Penalidade Máxima II, deflagrada pelo Ministério Público de Goiás, que investigava manipulações de apostas esportivas no futebol brasileiro. Ele teria aceitado receber R$ 50 mil para forçar e ser advertido com um cartão amarelo em um duelo contra o Avaí, pelo Brasileirão do ano anterior – algo que não cumpriu.
O caso avançou. Em junho, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva o condenou e o suspendeu por 12 jogos. Menos de um mês depois, o contrato com o Santos foi rescindido. Em julho, foi anunciado pelo Alanyaspor, da Turquia, no que parecia ser um recomeço longe de tudo. Mas o STJD reviu a pena e ampliou a suspensão para 360 dias. A Fifa validou. Bauermann estava impedido de jogar em qualquer lugar do mundo.
Ele foi ao fundo do poço. Viu o filho chorar no quarto por ter de deixar a cidade de Santos de uma hora para outra. Teve momentos de esperança, outros sem. Achou que nunca mais teria uma nova oportunidade, sentia que os dias demoravam mais a passar. A nova chance, no entanto, chegou. Bauermann vive hoje a melhor fase da carreira. Ele é o camisa 4 do Pachuca, do México, que vai estrear no Mundial no próximo dia 18. O time está no Grupo H, o mesmo do Real Madrid.
Coração aberto
Bauermann recebeu a ESPN para uma entrevista exclusiva. A partir do momento em que o caso das apostas veio à tona, pouco falou sobre o assunto. Passados quase dois anos desde que a investigação se tornou pública, ele abriu o coração sobre tudo que passou enquanto esteve longe dos gramados.
“Eu passava dias em casa chorando, sem nenhuma perspectiva. Olhava para os meus filhos. Já vi meu filho chorando no quarto algumas vezes por ter de romper um vínculo em que estávamos felizes em Santos e ter de sair de lá por conta disso”, revelou.
“Isso é uma das partes que mais me cortam o coração: entrar no quarto do meu filho e vê-lo chorando com saudade dos amigos, saudades do que nós vivíamos em Santos”, seguiu.
“Foi um aprendizado muito grande. Espero que as pessoas se espelhem nisso e aumentem sua fé por meio da minha história, para verem que Deus é muito grande e pode fazer grandes coisas em nossas vidas, assim como fez na minha”, completou.
O zagueiro, em duas respostas diferentes, classificou o que passou como muito difícil.
“Foi um período em que eu tive de me fortalecer, muitas portas foram fechadas. Mas eu sempre tive fé e esperança de que as coisas podiam mudar”, disse, ainda no início, quando questionado sobre o fato de estar envolvido no escândalo.
“Foram momentos em que eu me via sem esperança, sem uma nova perspectiva de vida”, afirmou, em outra fala, ao relembrar os dias de suspensão.
As declarações sobre ter ou não ter esperança podem parecer conflitantes, mas deixam claro os altos e baixos que o jogador viveu.
“Eu tinha 27 anos. Um atleta de 27 anos teoricamente tem de estar em seu auge, e eu estava passando pelo pior momento da minha carreira. É difícil criar perspectiva de carreira depois de passar por isso”, refletiu. “Cada dia parecia que tinha 48 horas quando eu estava em casa sem poder jogar, sem poder treinar”.
“Hoje, graças a Deus, me vejo em outro patamar. Aprendi muito com isso. Sei que foi necessário para que eu pudesse estar aqui. Foi um aprendizado muito grande. Talvez, em outra oportunidade, se estivesse aqui, não aproveitaria como deveria ser”, analisou.
Encarando o passado
Quando Bauermann foi condenado inicialmente a 12 jogos de suspensão, ele chorou. O jogador estava no plenário do STJD, no Rio de Janeiro. As lágrimas eram, também, de alívio. Outros atletas envolvidos na Operação Penalidade Máxima II tiveram penas maiores – o que se confirmou quando a suspensão foi alterada para 360 dias.
A investigação apontava que o zagueiro topou receber R$ 50 mil para tomar amarelo diante do Avaí. Ele não cumpriu o combinado. Passou o jogo todo sem ser advertido pelo árbitro com o cartão, o que causou prejuízo aos apostadores.
Diante da situação, como forma de ressarcimento, ele teria feito novo acordo: seria expulso dias depois, em uma partida contra o Botafogo. Dessa vez, recebeu vermelho, mas o cartão foi mostrado apenas após o apito final. As casas de apostas não contabilizaram a expulsão, fato que teria gerado outro prejuízo.
O relatório do Ministério Público de Goiás mostrava que o atleta, a partir de então, teria começado a ser ameaçado.
“Creio que hoje sou uma pessoa mais madura, mais consciente, que antes tinha algumas dificuldades de dizer certas coisas para as pessoas, onde eu me prejudicava para não prejudicar as outras”, disse Bauermann.
“Quando começamos a entender como o ser humano é e a maldade que as pessoas às vezes têm disfarçada de bondade, começamos a ter mais maturidade e entender melhor o motivo das pessoas se aproximarem da gente. Eu diria para aquele Bauermann lá de trás para que tivesse maturidade suficiente para saber lidar com as pessoas e saber se impor”, continuou.
“Acho que o crucial naquele momento, para que passasse por isso naquela época, foi não saber me posicionar. Foi o ponto-chave para que tudo acontecesse. Eu diria para aquele Bauermann se posicionar, se impor e botar limite nas pessoas. Mesmo com carinho, mesmo gostando de algumas pessoas, temos de impor limite, impor respeito, se impor, para que as pessoas que se aproximam com uma maldade disfarçada de bondade não tirem proveito”, seguiu, em desabafo.
“Às vezes a gente se entrega para uma pessoa, para uma amizade, pensando que são só coisas boas, que se aproximam de nós querendo nosso bem, mas muitas vezes as pessoas vêm disfarçadas, como diz o ditado, de lobo em pele de cordeiro. O que diria para aquele Bauermann é para ter essa maturidade para lidar com todo tipo de pessoa que se aproximava dele”, completou.
Uma nova chance
Bauermann arcou com as consequências. O contrato com o Alanyaspor, da Turquia, assinado logo após deixar o Santos, foi rompido antes mesmo da estreia, por conta da suspensão.
“Depois de ter passado por tudo que passei, mesmo com algumas injustiças, por tudo que aconteceu, me sinto uma nova pessoa. Com certeza arrependido de algumas coisas, sim, mas sei que tudo foi necessário para um aprendizado”, pontuou.
O afastamento dos gramados terminou em 10 de maio de 2024, há menos de um ano. Semanas depois, ainda em maio, ele acertou com o Everton, do Chile, onde recomeçou a carreira. O desempenho em solo chileno fez com que fosse procurado pelo Pachuca ainda em novembro. Estreou pelo time mexicano no último dia 20 de janeiro.
“Estou feliz com essa nova oportunidade que estou tendo, com esse novo momento, depois de ter passado por tudo isso, onde cheguei ao fundo do poço, onde pensei que não pudesse ter uma nova oportunidade. Pensei que as coisas, por já estarem difíceis, pudessem piorar e talvez não tivesse o retorno ao futebol”, disse.
“Mas graças a Deus tive essa chance de voltar. Voltei no Chile, voltei bem, e agora aqui, com essa oportunidade que nem nos melhores sonhos poderia imaginar que estaria em clube com possibilidade de jogar o Mundial. Hoje estou muito feliz por ter passado por isso, com esse aprendizado necessário, para estar aqui tendo essa oportunidade”, comemorou.
“São coisas que passamos na vida, mas que, se soubermos tirar um aprendizado disso, podemos mostrar para todos o poder que Deus tem nas nossas vidas e mostrar que podemos dar volta por cima. É o que estou fazendo na minha carreira. Eu tinha muitas boas histórias no Brasil, passei por bons clubes, era muito conhecido. Depois de ter ido para o fundo do poço, estou vivendo meu melhor momento profissionalmente. Isso mostra o quão bom tem sido Deus com a minha vida. Essa oportunidade eu sei que não teria se não fosse Deus me abençoando, ajudando e fortalecendo durante esses dias”, completou.
Bauermann disse ter sido muito bem recebido no México. Contou ter se sentido em casa, estar adaptado à cultura. Durante as respostas, misturava o idioma português com o espanhol, como se falasse essa língua há muito tempo.
“Nos dias que passei longe dos gramados, sem poder jogar, suspenso, Deus foi me preparando para que eu pudesse voltar e aproveitar a oportunidade da melhor maneira que eu pudesse”, reiterou.
“Vir para um clube que vai jogar o Mundial é um passo muito grande. Isso mostra que, mesmo que tenhamos planos para nossa vida, Deus tem um propósito muito maior. Foi isso que ele fez com minha vida. Eu não poderia imaginar que hoje, dois anos depois de uma suspensão, eu estaria em um clube que vai jogar o Mundial”, finalizou.
O Pachuca vai enfrentar o Real Madrid na segunda rodada da fase de grupos do Mundial de Clubes. Não é algo inédito para a equipe, que perdeu a final do Mundial de 2024 para os merengues, por 3 a 0, depois de eliminar o Botafogo na semifinal. Mas é algo especial para Bauermann. No último ano, ele já tinha assinado com o time, mas não estava inscrito.
“As expectativas são as melhores. Isso é o que sonhamos sempre: jogar contra os melhores. Hoje sabemos que eles (Real Madrid) são os melhores do mundo. Estamos com expectativas muito boas. Poder jogar contra esses jogadores mostra também nossa qualidade”, afirmou.
A relação com o Brasil
Aos 29 anos, Bauermann tem muita história para contar. Além de Pachuca, Everton e Santos, já passou por América-MG, Paraná, Figueirense, Atlético-GO, Náutico e Internacional.
No último ano, na reta final da suspensão, foi ao Rio Grande do Sul para ajudar a população do estado em que nasceu, em meio às enchentes que mataram 183 pessoas, deixaram desaparecidos e desabrigados.
“Não pensei duas vezes antes de ir ajudar. Assim que abriram a oportunidade para os civis poderem colaborar eu fui um dos primeiros a estarem lá para poder resgatar pessoas, resgatar animais. Fiz tudo internamente, sem expor muito, porque não queria que as pessoas vinculassem isso com as coisas que aconteceram comigo no passado”, contou.
“Queria que as pessoas vissem esse meu ato como um ato somente de solidariedade, não para tapar algo do meu passado. Fiz o máximo que pude, reuni o máximo de amigos para ajudar as pessoas. Estávamos lá, estava chovendo e estávamos tirando barco da água, tirando animais da água, fazia chuva ou fazia sol eu estava lá para ajudar as pessoas. Era o que meu coração mandava”, completou.
“Nos primeiros dias, ninguém sabe, mas eu estava em casa fazendo sanduíche, comprando coisas no mercado para fazer sanduíche e distribuir nas ruas, nas escolas. Consegui doações de mais de 10 mil litros de água, caminhões de água e mantimentos que vieram de outras cidades para Porto Alegre. Estava lá de coração, mas também para as pessoas verem que todos podiam ajudar de alguma forma”, seguiu.
Estar “em casa”, como Bauermann classifica o Brasil, ainda parece mexer com o jogador.
“Estou muito feliz aqui [no México]. Muito feliz de verdade. Aqui fui muito bem acolhido, cultura muito boa, liga muito boa, clube muito bom. Mas a gente sabe como é estar na nossa casa, onde já passamos algumas vezes. Sabemos o quanto isso é bom”, disse, ao ser perguntado se voltaria a atuar em solo brasileiro.
“Meu objetivo hoje é me manter aqui, porque estou feliz, mas se porventura tiver uma oportunidade de voltar para o Brasil eu voltaria também com o maior prazer. Isso em consenso com os clubes e minha perspectiva de carreira. Se fosse algo bom para todos, seria bom uma volta ao Brasil”, disse.
O futebol também ensina
O futebol deu lições a Bauermann. Entre arrependimentos, erros e acertos, o zagueiro segue a vida e leva os aprendizados também para dentro de casa.
“Já convivi com muitas pessoas, fiz muitos amigos. Amigos que falo até hoje em clubes que joguei há muitos anos. Saber lidar com as pessoas é a melhor parte de tudo isso, porque conhecemos pessoas de todos os lugares do mundo”, refletiu.
“Isso faz com que a gente adquira um respeito sobre todas as coisas e pessoas. Saber lidar com as pessoas e trazer isso para dentro de casa. Tenho três filhos e esposa, somos pessoas diferentes, apesar de sermos uma família, então isso traz as boas experiências que adquirimos no esporte, respeitando e conhecendo outras culturas”, continuou.
“Acima de tudo creio que está o respeito com todas as pessoas, crenças, para que possamos nos tornar pessoas melhores e marcar também a vida dos outros, para que futuramente lembrem de mim com bons olhos, com carinho, que tenham lembranças boas minhas ajudando pessoas, ajudando o clube, a equipe. É o principal que o futebol tem proporcionado”, encerrou.