Em depoimento publicado nesta terça-feira (29) no site The Player’s Tribune, o goleiro Alisson, do Liverpool, relembrou o período extremamente difícil que viveu em fevereiro de 2021, quando seu pai morreu de maneira trágica após mergulhar em uma barragem no Rio Grande do Sul.
O arqueiro inicia seu relato relembrando como recebeu a notícia do falecimento, em um momento extremamente complicado para o mundo, que vivia ainda a pandemia de COVID-19.
“Quando recebi o telefonema com a notícia de que meu pai tinha morrido, eu estava a um oceano de distância de casa. Eu estava em Liverpool, bem no meio da temporada 2020/21. A morte dele foi repentina. Um choque total. Minha mãe me ligou e me disse que houve um acidente e que meu pai tinha se afogado na barragem perto da nossa casa. Ali caiu o meu chão. Não parecia possível que alguém como meu pai pudesse realmente ter morrido. Ele era um ‘homem de verdade’, como dizem. Um cara muito forte”, rememorou.
Justamente por conta da pandemia, e também por sua esposa estar grávida no período, Alisson se deu conta de que seria extremamente difícil regressar ao Brasil para o funeral.
“Quando ele faleceu, aquilo me destruiu. Não conseguia nem pensar em futebol. Eu tinha que ficar lembrando que eu até jogava futebol, e que estávamos lutando pelas quatro primeiras posições na Premier League. Era ainda mais complicado, porque estávamos bem no meio da pandemia, e a logística de voltar para casa, um pesadelo. Minha esposa estava grávida do nosso terceiro filho, e a COVID-19 estava explodindo novamente no Brasil. O médico dela disse que era arriscado pra ela viajar, então ela teria que ficar em Liverpool com nossos filhos. Isso foi uma angústia total para ela, porque ela amava muito meu pai”, contou.
“O Ray Haughan, que era o diretor do clube na época, me mandou uma mensagem e me disse que os caras tinham se reunido e concordado em pagar um voo particular para eu ir ao funeral, para que eu não tivesse que me preocupar com nada. Mas era uma situação impossível, porque naquela época, para voar pra fora do país, você tinha que ficar em quarentena em um hotel por 14 dias quando voltasse. A ideia de voltar do enterro do meu pai e ficar preso em um quarto de hotel sozinho por duas semanas era difícil, mas a pior parte era imaginar minha esposa sozinha por tanto tempo. Ela estaria nos últimos meses de gravidez, e tudo poderia acontecer”, recordou.
“Liguei para minha mãe e meu irmão, expliquei a situação, e esse foi o telefonema mais brutal da minha vida. Choramos muito, mas, no final, decidi que meu pai gostaria que eu ficasse com meus filhos e sua ‘filha favorita’ e os protegesse, não importa o quão difícil fosse. Foi assim que ele viveu sua vida, e essa foi a melhor maneira de honrá-lo”, complementou.
Sem conseguir retornar ao Brasil, o jogador teve que participar do velório à distância, por chamada de vídeo no celular.
“Tivemos que assistir ao funeral dele por ligação de vídeo. Meu irmão segurou o celular durante toda a cerimônia, e eu pude orar e chorar com minha mãe, e até me despedir do meu pai em seu caixão. Naquele momento, por mais estranho que pareça, você esquece que está em uma tela. Todas as suas memórias e seu amor superam a distância, e você está falando com seu pai na eternidade”, observou.
De acordo com Alisson, ele passou a receber então uma enorme onda de apoio de seus colegas de equipe e também de rivais, como os técnicos Josep Guardiola, do Manchester City, e Carlo Ancelotti, que à época estava no Everton.
Os dois ou três dias seguintes foram nebulosos. A primeira coisa que me lembro foi de todas as flores chegando em nossa casa. De Virgil van Dijk, do Andy Robertson, do Fabinho, do Firmino, do Thiago… E assim por diante. Todos os meus irmãos. Todos nos enviaram flores, manifestando seus sentimentos. E não apenas dos meus companheiros de equipe, mas também de Pep Guardiola e Carlo Ancelotti, que me enviaram cartas de condolências. Isso realmente tocou meu coração. A cada 10 minutos, havia outra batida na nossa porta, com um entregador segurando flores”, relatou.
O goleiro também foi “abraçado” pelo então comandante do Liverpool, Jürgen Klopp, que o liberou totalmente de suas obrigações pelo clube.
“Nunca vou esquecer, Klopp me ligou, e eu estava me sentindo muito culpado por perder o treino, porque estávamos fora das quatro primeiras colocações, e precisávamos de todos os pontos possíveis. Mas Klopp me disse para levar o tempo que precisasse. Eu disse: ‘Sim, mas, mas…’. Ele me interrompeu: ‘Não, não. Não se preocupe com nada'”, revelou.
“Klopp havia perdido seu próprio pai mais ou menos na mesma idade, e ele entendia muito bem a minha dor. Ele não era apenas um técnico para mim, era como um segundo pai. Acho que todos podiam ver isso, desde o momento em que ele veio correndo como um maluco no meio do campo para pular em meus braços quando Origi marcou contra o Everton. Eu pego esse clipe no meu telefone de vez em quando, e rio todas as vezes. Mas houve tantos momentos que o público nunca vê, quando ele se sentava comigo no ônibus retornando depois de uma partida e brindávamos a vitória com uma cerveja como um verdadeiro alemão e um verdadeiro brasileiro”, seguiu.
“Klopp me permitiu ter tempo para cuidar das minhas dores, e poucos treinadores seriam tão compreensivos. Para mim, é o jeito do Liverpool de ser. Aqui é diferente. Os jogadores são diferentes”, exaltou.
Foi com o apoio dos companheiros de equipe que Alisson conseguiu, aos poucos, superar as barreiras mentais causadas pela morte repentina de seu pai.
“Sem meus companheiros de equipe e sem o clube, eu não teria conseguido lidar com aquele momento da minha vida. Quando voltei a treinar alguns dias depois do funeral, pensei em meu pai em momentos aleatórios. Não pude evitar. Eu tinha um flash dele parado na lateral do campo quando eu era criança me assistindo jogar, parado ali sem nenhuma expressão, sem dizer uma palavra. Ou pescando com ele no lago, ou sentado ao redor do churrasco com ele tomando chimarrão, dizendo algumas palavras a cada cinco minutos. Ou ele esmagando o rosto inteiro em um bolo de aniversário para comemorar aquela famosa defesa de pênalti do Taffarel em 98. Ou ele deitado no sofá depois de um longo dia, ainda tendo força suficiente para rastejar para baixo do sofá e fingir ser o Taffarel… Eu tinha esses flashes e começava a chorar. Bem ali no treinamento”, contou.
“Mas meus companheiros de equipe foram inacreditáveis. Eles nunca me julgaram. Eles agiram como se fossem todos parte da minha família e também estivessem de luto. Poder treinar novamente me trouxe uma sensação de calma. Eu sempre digo que não escolhi o futebol. Você não pode escolher o que é inconsciente, o que já está em seus ossos”, acrescentou.
Por fim, Alisson relembrou seu famoso gol de cabeça marcado sobre o West Bromwich, em maio de 2021, que emocionou o mundo todo.
“Seis dias depois do nascimento do Rafael [3º filho de Alisson], aconteceu algo que eu ainda não consigo explicar. Estávamos jogando uma partida crucial contra o West Bromwich, brigando por nossa vaga na Liga dos Campeões, e tínhamos de vencer a partida. Foi um daqueles dias em que parece que nada dá certo, o jogo estava 1 a 1, faltando alguns segundos para terminar. Como goleiro, você fica parado na sua área nesses momentos, se sentindo impotente”, relatou.
“Mas então ganhamos um escanteio. E o nosso treinador de goleiros gritou para eu correr pra área. Não tinha nada a perder. Então eu atravessei o campo o mais rápido que pude, e cheguei na área bem na hora em que Alexander-Arnold cobrou o escanteio. Pra falar a verdade, como goleiro, você nunca, nunca, nunca pensa que vai realmente marcar um gol. “Só entra na área e cria o caos”. O que sei é que em seguida a bola está vindo na minha direção. Eu viro minha cabeça e caio no chão”, seguiu.
“Então, estou cercado por um calor. Essa é a única maneira que posso descrever. Todos estão me abraçando. Thiago está me abraçando e chorando. Firmino está me abraçando, chorando e rindo ao mesmo tempo. Salah está comemorando como uma criança, pulando em cima de mim. Nunca o vi tão feliz depois que outro companheiro marcou um gol (risos)! Alegria total”, festejou.
“Foi ainda mais especial porque estávamos jogando com os estádios vazios, sem o grito da torcida, porque a única coisa que eu conseguia sentir era o amor dos meus companheiros de equipe, que me ajudaram a passar pelo momento mais difícil da minha vida. Todo o nosso banco, a equipe e os roupeiros… Estavam todos gritando tão alto que parecia que estávamos diante das arquibancadas cheias novamente. Lembro que olhei para o céu e era um daqueles dias cinzentos e chuvosos na Inglaterra. Mas para mim, o céu estava cheio de luz. Eu disse: “Pai…. Pai… É para ti, pai”, encerrou.