Dia 4 de abril de 2016. Após um conflito fatal entre torcedores de Palmeiras e Corinthians na estação São Miguel Paulista, em São Paulo, a Federação Paulista de Futebol (FPF) acatava uma recomendação da secretaria de Segurança Pública e dava fim a clássicos com duas torcidas no estado, com extensão a Santos e São Paulo.
Aos poucos, a medida ganhava outras proporções, ainda que instaurada em caráter emergencial. Em Campinas, Guarani e Ponte Preta também eram incorporados, mas os impactos ultrapassavam qualquer estádio.
Nove anos depois, a ESPN revisitou o passado, acompanhou a rotina de torcedores e foi atrás de clubes, entidades e poder público para entender como o veto estabeleceu uma rota de colisão nos bastidores. Mais do que isso: forjou uma nova geração nas arquibancadas.
‘Jogo da morte’
Dia 20 de agosto de 1995. Sob a presença das duas torcidas no estádio do Pacaembu, Palmeiras e São Paulo mediam forças pela decisão da extinta Supercopa São Paulo de Futebol Júnior. Seria a segunda e última edição da história do torneio.
Após um empate sem gols, a partida foi decidida no gol de ouro pelos pés do atacante Rogério, que garantiu o título palmeirense. A festa, no entanto, deu lugar a um dos episódios mais sangrentos da história do futebol paulista.
Em êxtase, torcedores da equipe alviverde invadiram o gramado e se aproximaram do setor são-paulino. Com pedaços de madeira e pedras deixadas pela reforma do tobogã, então setor popular do estádio, a torcida Tricolor reagiu, e uma verdadeira batalha campal se alastrou pelos gramados.
Ao todo, 102 pessoas ficaram feridas, entre 22 policiais e 80 torcedores. Um deles não resistiu. Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos, jamais retornou para casa após sair para acompanhar seu time de coração. A morte do torcedor são-paulino, no entanto, é uma entre dezenas de casos à margem do futebol em São Paulo.
Há 30 anos, o jornalista e pesquisador Rodrigo Vessoni acompanha os conflitos entre torcidas. No levantamento mais recente, as mortes se espalham, mas também se afastam dos estádios.
“Eu tenho contabilizado todas as mortes desde outubro de 1988, quando se tem notícia, pelo menos, da primeira morte ligada ao futebol. Então, desde outubro de 1988 até a última que eu tenho contabilizado aqui, que é em setembro do ano passado, em Recife, já são 405 mortes. Apesar de São Paulo ser o estado que mais morreram torcedores, nós temos o Rio Grande do Norte, por exemplo, em segundo, Goiás, Ceará, Pará, Alagoas. Então, são locais onde há uma quantidade enorme de mortes. Todas ligadas, claro, ao futebol, mas tem briga de bar, briga de rivalidade que não tem ali no momento organizado e tudo mais”, conta.
Líder no número de mortes, São Paulo passa a conviver com uma nova realidade em clássicos. Com a redução gradual do setor visitante e o banimento de bandeiras, a festa não passa ilesa. Dono de um passado de multidões, o futebol paulista se vê sem saída para contê-las no mesmo ambiente, e a situação chega ao limite.
Torcida única como solução?
Desde que a torcida única foi implementada em caráter emergencial, em abril de 2016, um levantamento do 2º Batalhão da Polícia de Choque de São Paulo é um mantra para quem defende o sucesso da determinação. Procurador de justiça, Paulo Castilho foi um dos proponentes da medida.
“O que posso dizer são os números e estatísticas que são incontestáveis. Não que eu defenda ou seja a favor de no estádio ter só uma torcida. Mas vou dar números gerais, que são dados oficiais da Polícia Militar: com a torcida única fixada a partir de 2016, passamos a economizar cinco mil PMs por ano, tivemos aumento de público na ordem de 30%, aumentamos mulheres e crianças nos estádios de futebol, e chegamos a diminuir em 97% as ocorrências não só nos estádios como nos entornos e no acesso, na capital paulista. Portanto, são números incontestáveis. Uma medida que era emergencial, paliativa, se mostrou eficaz e perpetuou, inclusive foi implantada em outros estados”, defende.
Após o veto entrar em vigor em São Paulo, federações de Minas Gerais, Goiás, Bahia e Rio Grande do Norte também foram para o mesmo caminho. O levantamento que baseou a determinação e a sua manutenção no futebol paulista, no entanto, foi interrompido no início de 2020 em razão da pandemia, e jamais retomado desde então.
Com 20 anos de carreira e atualmente longe dos gramados, o comentarista da ESPN, Fábio Santos, admite que a medida tranquiliza diante do cenário atual.
“Eu, como pai, me sinto confortável na situação de hoje. Acho que fica muito confortável para quem comanda deixar dessa maneira, mas como você vai tirar a razão? Mesmo estádios com torcida única as pessoas marcam pontos de encontros para arrumar confusão. Enquanto o ser humano não mudar sua postura, realmente vai ficar muito mais fácil para as pessoas que comandam o futebol restringirem, porque eles dão motivo para que isso aconteça. São menos gastos, menos policiais, menos dor de cabeça”, disse.
Apesar dos efeitos positivos, a adoção da torcida única não evitou que os conflitos entre torcedores fizessem novas vítimas pelo território paulista. Ao todo, 19 pessoas perderam a vida por confrontos entre torcidas ao longo da última década em diferentes cidades do estado. Além da capital, municípios como Itapevi, São José do Rio Preto e Mauá também se destacam entre as maiores incidências.
Ampliação da segurança ou vitória da intolerância?
Para Paulo Castilho, a torcida única não apenas deve ser mantida em São Paulo, como estendida para clássicos nacionais e internacionais.
“Se a gente for para cima do CPF, e não só no CNPJ da torcida organizada, identificar esses milhares de torcedores. Volto a afirmar que o Estado não faz um trabalho efetivo desse, não tem nem condições nem estrutura atualmente, isso teria que ser montado. Nós passaríamos para o segundo passo, que é impedir que essas torcidas inimigas acessem os estádios ou se desloquem até os campos de futebol, para depois nós começarmos a trazer o torcedor comum. Acho plenamente viável. Mas enquanto nada for feito, acho que a torcida única tem que perdurar e, inclusive, estender para outros estados no Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil e, eventualmente, da Libertadores, por que se não continuaremos a ter problemas”, disse.
“Você querer colocar duas torcidas que se assemelham a uma intolerância religiosa, que eles já criaram uma animosidade, sem nenhuma medida efetiva, no mesmo ambiente, vai dar problema. Não precisa ser expert no assunto. Precisamos ser realistas e enfrentar o problema com muita responsabilidade. De bem intencionado o inferno está cheio. Precisa de coisa séria, concreta, responsável”, completou o procurador.
Diferentemente de Castilho, Marco Antônio Eberlin, presidente da Ponte Preta, acredita que uma extensão do veto representaria não apenas um passo atrás, como também um recado ao restante do mundo.
“Eu não posso ensinar como fazer segurança pública nesse país. Agora, decretar isso ao longo do Brasil é decretar também a falência do poder público. É o poder público dizendo que nós não temos condições de fazer um evento aonde o país foi soberano por anos no futebol mundial”, questionou.
Com quatro livros publicados sobre as torcidas organizadas, o sociólogo Bernardo Buarque Buarque de Hollanda questiona a intenção de ampliar a determinação.
“Então, quer dizer, você está estendendo do princípio de São Paulo para o Brasil, porque daqui a pouco qualquer jogo do Botafogo e Ponte Preta é um problema, então torcida única se torna uma forma fácil de aplicar, de resolver o problema, mas resolve pela superfície. E resolve pelo princípio inverso, você admite que a intolerância venceu. As pessoas não podem de fato conviver”, argumentou.
Negação do rival
Fundada em 1969 durante a ditadura militar, a Gaviões da Fiel é a primeira e grande torcida organizada a despontar em solo nacional, com até 700 membros nos anos 70. Atualmente, são 139 mil integrantes espalhados pelo mundo. Um deles é Ana Júlia Soares.
Há nove anos, a moradora do bairro Cangaíba, na zona leste de São Paulo, faz parte da principal torcida do Corinthians. Apesar de frequentar todas as partidas na Neo Química Arena, ela lamenta a falta de uma experiência que vive apenas na memória de quem chegou antes dela.
“É decepcionante, porque são quase dez anos e eu nunca consegui ir a um clássico com duas torcidas. E todo mundo fala que é uma sensação muito boa, você estar ali na casa do seu maior rival, cantando mais alto do que ele, e eu infelizmente nunca consegui viver isso”, diz a torcedora que, desde 2019, atua como diretora do deparpamento social da Gaviões.
Mea culpa?
À beira dos dez anos da determinação, os clubes paulistas ensaiam um movimento em prol da volta das duas torcidas nos clássicos paulistas. O problema é que a unanimidade, nesse caso, nem sempre significa união.
“Dirigente que não pensar em trazer divisa, for contra a volta da torcida, está trabalhando contra o futebol na parte financeira, educacional e patrimonial do futebol brasileiro. O futebol brasileiro vai cada vez mais andar para trás fazendo dessa forma. Agora, sentar todos nós lá e decidir, bater o pé e vamos no Ministério Público, no presidente da federação, porque tem que partir da gente, né? Tem que partir dos clubes. Temos o nosso erro. Vou fazer uma mea culpa. Os dirigentes também erram”, admitiu o presidente da Ponte Preta.
Paulo Castilho também reforçou a importância da responsabilização dos clubes na busca por soluções.
“Uma medida que era para ser emergencial e transitória já está fazendo uma década, e não vejo perspectiva nenhuma de revogar, porque não temos um estudo e um projeto. O mesmo estudo e projeto que foi feito para fixar a torcida única, não está sendo nada feito para derrubá-la. E as pessoas que não entendem e não conhecem um assunto, se numa canetada derrubarem essa medida, elas vão responder por muito sangue, você pode ter certeza disso, porque a segurança de um evento esportivo não compete só ao Estado, mas também ao clube mandante e ao organizador do evento”, lembrou.
Teconolgia como aliada
De acordo com o artigo 148 da Lei Geral do Esporte, estádios de todo o país com capacidade para mais de 20 mil lugares serão obrigados a dispor de biometria facial em seus acessos. O prazo é para junho de 2025. Mas se os clubes se mexem e ganham reforço com a tecnologia, por que o estado mais rico do país continua a insistir com a torcida única nas arquibancadas?
“Já tem um consenso. Se os presidentes aceitam, e com certeza todos estão falando com suas torcidas de uma forma mais educativa, acho que isso já é um grande passo para que isso aconteça. Claro que o grande problema está no policiamento, nos órgãos públicos, mas acho que isso é uma questão de convencimento, adaptação. Eu espero que num futuro próximo os meus netos consigam torcer para o Corinthians com a torcida do seu adversário presente na nossa Arena”, externou Augusto Melo, presidente do Corinthians.
“Nós não podemos jogar a toalha. Essa questão de falar que agora é proibida a torcida dividida é você jogar um pouco a toalha de que você não consegue organizar um grande projeto para um grande entretenimento”, defendeu Julio Casares, presidente do São Paulo.
“Todos os envolvidos estão praticamente chegando a uma conclusão. Eu tenho uma esperança muito grande, porque nós conversamos recentemente com o Ministério Público, fizemos uma relação mais próxima, e percebi que todos estamos preparados para assumir esse risco. É um risco calculado, mas necessário, imprescindível para que você adote uma medida para que você não apenas veja a consequência e dizer: tá vendo, tomamos essa decisão e olha o que acontece. Pelo contrário, é provar que o retorno das duas torcidas ao estádio está maduro suficiente para evitar aquilo que nós estávamos vendo num passado recente”, disse o presidente do Santos, Marcelo Teixeira.
Entidades acatam, mas não compram briga
Apesar da rota de colisão dos dirigentes com as autoridades nos bastidores, há quem defenda que episódios recentes também poderiam servir de inspiração para retomar a discussão da volta das duas torcidas em clássicos.
É o que defende o presidente do São Paulo. “Vou dar um exemplo aqui da Supercopa que o São Paulo foi campeão em Belo Horizonte. Houve toda uma força-tarefa de escoltas de torcidas, de organização, e nós não tivemos grandes problemas, mesmo com a torcida do Palmeiras dividindo espaço com a nossa torcida. Foi uma grande festa dentro e fora do campo”, recordou.
A declaração do dirigente tricolor vai ao encontro do posicionamento da Confederação Brasileira de Futebol. Conforme apuração da ESPN, a CBF entende que as Supercopas realizadas nos últimos dois anos, entre São Paulo e Palmeiras e Flamengo e Botafogo, são base para um recado da entidade: as torcidas têm que aprender a conviver. Apesar de descartar a expansão do veto ao visitante para clássicos nacionais, a entidade também reconhece que as autoridades seguem com a palavra final.
O que dizem outros envolvidos
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública esclarece que a torcida única foi uma recomendação do Ministério Público, sendo acatada pela Federação Paulista de Futebol. A 6ª Delegacia de Polícia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva do DOPE foi direcionada para investigar os crimes relacionados a eventos esportivos, já o 2º Batalhão de Choque, responsável por policiamento em grandes eventos, realiza reuniões constantes com representantes das torcidas organizadas e monitoram as ações para evitar que confrontos entre torcidas aconteçam.
Já a Federação Paulista de Futebol ressalta que, embora os dados apontem para a redução de confrontos entre torcidas e um aumento no público e na arrecadação dos jogos, a torcida única não é a solução definitiva para o problema da violência entre torcidas, que tem acontecido em locais distantes dos estádios.
A FPF defende a aplicação rigorosa da legislação para combater a impunidade nos casos de violência relacionados ao futebol. Além disso, reforça a necessidade de um diálogo ampliado com o poder público e clubes para desenvolver medidas estruturais e eficazes, garantindo um ambiente seguro e acessível para todos os torcedores dentro e fora dos estádios.
A ESPN procurou Rômulo Amaro, presidente do Guarani, e Leila Pereira, presidente do Palmeiras, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.